Servir a Força Aérea Portuguesa como Especialista M.M.A. foi um orgulho, o ZINGARELHO uma grande paixão.
---TODOS PARTIMOS UM DIA--
Presto-te a minha homenagem na hora do adeus, ciente do sentir detodos que dedicaram parte das suas vidas, para garantir a tua operacionalidade ao serviço da F.A.P. .
Gratidão de um jovem que te conheceu já lá vão cinquenta anos, uma paixão que o tempo não apagou.
Agradecer-te! porque para tanta dedicação e zelo, a retribuição em emoções na embriaguez do voo foi compensatória.
No maravilhoso Mundo da aviação, toda a complexidade de um mecanismo que permite o voo a um corpo mais pesado que o ar, foi em ti que mais aprendi, assim como o sonho e o desejo de voar foram contigo realizados.
Que prazer voando nos limites de altitude envolto em nuvens de uma brancura estonteante!
Nos voos rasantes quase tocando a copa das árvores .
Por sobre rios e lagos sempre acompanhado pelo reflexo da tua imagem no espelho de água.
Por entre vales, por sobre montes e planícies deliciando-me com a beleza da paisagem e fauna Africana, naquela terra enfeitiçante.
Que emocionantes as tuas capacidades de voo; as auto rotações, estacionários, stall turn, aterrar e descolar dos mais inimagináveis lugares.
Sempre demos o melhor na entrega e cuidados na tua manutenção, pouco importava chegarmos ao fim do dia com o cheiro a jota impregnado na roupa, ou os dedos picados e furados pelos arames de algumas frenagens.
Tratavamos-te com ternura, eras " O NOSSO MENINO " e isso tinha o apreço e confiança dos Pilotos que entretanto sabiam bem como ansiávamos ter o teu controle, só que fosse por momentos.
Por vezes éramos premiados passando de Mecânicos a Co-pilotos, desfrutar os Comandos e levar-te em linha de voo, foram instantes inesquecíveis de verdadeiro êxtase.
Sobre a tua participação e acção como aeronave militar em tempo de guerra, quero referir uma passagem na introdução do livro “A Força Aérea na guerra em África” do Coronel da F.A.P. na reserva Luiz Alves de Fraga.
“A Força Aérea fez a guerra sem rancores nem ódios , procurando sempre que lhe era possível tratar com humanidade e desvelo, o inimigo ferido ou o prisioneiro acabrunhado.Terão havido excepções , impossível era não as haver.”
E ainda quando refere na página 49 “A guerra só tem contornos verdadeiramente românticos nos filmes; na realidade ela é feia, dura e atinge, por vezes, fronteiras de uma grande crueldade. Não há combatentes bons e maus... há somente combatentes capazes de usar da humanidade possível para cumprirem a sua missão.”.
Na verdade estas palavras traduzem a realidade de um período que vivi durante dois anos , que me marcou profundamente e que jamais esquecerei.
Na guerra por vezes é difícil mantermos a serenidade e tolerância num ambiente pesado, hostil, marcado a ferro e fogo.
Na minha missão como Mecânico de Helicópteros e de toda uma Esquadra (503 ÍNDIOS) que cumpriu estes anos de adversidades e vicissitudes inerentes, quando perante os limites intoleráveis, procurámos e soubemos ser humanos, evitando ódios e recusando a barbárie em vinganças cegas.
Relevo a acção gratificante e humanitária dos Helicópteros e suas tripulações neste conflito, tanto com as nossas tropas como com os prisioneiros.
Quantas vezes em situações de grande risco, no apoio prestado áqueles homens que nas mais difíceis condições de sobrevivência no cumprimento do dever esperavam os reabastecimentos, os alimentos, água, medicamentos e ainda o que de mais importante ansiavam e que eu sempre constatava; o correio! As notícias da família, da sua terra, uma carta da sua amada.
Impossível esquecer! quando sob enorme tensão, em situações de perigo permanente resgatando e salvando aqueles bravos soldados do inferno das zonas de combate, quando já tudo parecia perdido, em sofrimento e desespero, no interior das matas, na tragédia das picadas minadas e armadilhadas, em verdadeiras cenas Dantescas de destruição e morte.
Que ânimo e esperança ao verem nos derradeiros momentos descer dos céus nos mais inóspitos lugares aquele pássaro de ferro em seu socorro.
Diziam alguns: “quando ouviamos o ruído do motor do Helicóptero em aproximação, ganhávamos nova vida”, na verdadade não ouviam nenhum ruído, ouviam sim o som, porque o Heli não faz ruído, aquilo era o som de uma melodia bem agradável ao ouvido e com o nosso toque de Especialistas na afinação perfeita.
Que equipa coesa! Piloto e Mecânico partilhando perigos e sobressaltos quando alvejados e abatidos nas operações no teatro de guerra, ceifando a vida a alguns companheiros.
Máquina voadora apaixonante que me deixas enorme saudade e uma lágrima de emoção ao ver-te voar e ouvir o som da tua turbina, recordando tantas horas de voo em comum.
Cavalo alado de uma tribo de ÍNDIOS,de Pilotos e Técnicos Especialistas, de amigos, camaradas, irmãos, de homens com valores e defeitos, com coragem mas também medo, família a que sinto orgulho de ter pertencido e que ainda hoje mantém viva a chama da amizade e solidariedade.
Durante cinco décadas fizeste história como uma das aeronaves mais cativantes e operacionais da Força Aérea Portuguesa.
Ficarás para sempre na memória de todos que tiveram o privilégio de viver e compartilhar momentos da tua existência.
Os que pilotaram, os que garantiram a tua manutenção que desfrutaram os prazeres das tuas qualidades e especificidades de voo.
E sobretudo aqueles que te devem a vida que nos momentos trágicos quando a esperança parecia perdida, por vezes nos limites e sob fogo inimigo, os resgataste , os salvaste e hoje podem dizer:
Bem hajas ALOUETTE III !
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Valeu a pena companheiro de tantos momentos e aventuras!
OBRIGADO ZINGARELHO
ATÉ SEMPRE !
Francisco Serrano
Mecânico de Helicópteros
Moçambique 71/72
09 de janeiro de 2021